A nutricionista paulista Neide Rigo resgata sabores e cheiros de plantas em desuso na gastronomia e confere a elas seu devido valor na culinária brasileira
Texto Janice Kiss
Fotos Fernanda Bernardino
Não há um só canto de praça ou de parque em que Neide Rigo deixe de pôr um olhar atento. É nesses lugares que ela encontra ervas meio amoitadas, algumas delas nascidas espontaneamente, mas que foram ignoradas pelo mercado porque seu consumo caiu em desuso. Dente-de-leão, beldroega, ora-pro-nóbis, por exemplo, pertencem a um cardápio de outro tempo, quando costumavam ser refogados no óleo ou na banha de porco com alho e cebola, para acompanhar talvez uma boa polenta mole. Mas a nutricionista, que quase foi artista plástica, não liga para modismos. 'Tenho um interesse histórico por alimentos, e por isso eles nunca perdem a importância para mim', explica. Neide acha que seu interesse pela comida nasceu na infância, numa rua do bairro da Brasilândia, em São Paulo, onde vivia gente de todos os lugares do país. Na casa de vizinhos baianos, aprendeu a comer jaca verde e coentro; com os piauienses, experimentou pela primeira vez a manteiga-de-garrafa e a castanha-de-caju; já os sergipanos lhe apresentaram os sabores do amendoim cozido, do inhame (hoje mais conhecido como taro) e do cará. E ainda tinha o cardápio de casa, dos pais paranaenses, que não incluía pratos da terra, mas sempre continha arroz, feijão com tempero bem caseiro, abóbora batidinha, carne e salada. 'Nessa rua fui apresentada à culinária regional', diz. Por influência do pai, a culinarista sempre dedicou atenção especial aos 'matinhos e matões', como costuma se referir às ervas e temperos. Estão todos lá, no quintal de casa - 'uns crescem plantados, outros largados e alguns de teimosos', brinca. É nesse pequeno espaço que Neide colhe ora-pro-nóbis, mangarito e cará-do-ar. Tem também capiçoba (folha similar ao espinafre), jambu (a erva amazonense que amortece de leve os lábios), e sementes de vários lugares. 'Mas nada é catalogado, porque a vida é corrida', resume a nutricionista, que presta consultorias a empresas, faz assessoria para cozinhas experimentais e mantém uma coluna gastronômica em uma revista há 15 anos.
Por resgatar alimentos à beira da extinção, Neide já contribuiu com o restabelecimento de alguns deles pelo país. Por exemplo, ela já mandou para a região de Garanhuns, em Pernambuco, um tipo de melão (o cruá) que estava desaparecido por lá. Uma outra vez, recebeu de um produtor um punhado de farinha de araruta, que anda sumida do mercado. Segundo ela, o que mais se encontra é a fécula de mandioca sendo vendida em lugar da outra 'Quem conhece sabe que os biscoitos de araruta são mais leves e branquinhos', explica. Toda essa troca acontece por meio do blog www.come-se.blogspot.com, de sua autoria, no qual ela conta um pouco das plantas e suas curiosidades, das descobertas culinárias que faz durante suas viagens, dá receitas e abre espaço para que blogueiros relatem suas experiências. A dedicação aos temperos quase sumidos lhe rendeu o convite para fazer parte da Arca dos Gostos, integrante do movimento internacional Slow Food, que prega a recuperação da tradição de alguns produtos em seus respectivos países. A função da Arca é elaborar um catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de alimentos ameaçados de extinção, mas ainda vivos, com potenciais produtivos e comerciais reais. 'É uma alegria ver uma comunidade dar importância a produtos que estavam desvalorizados', comenta.
No próximo mês, Neide participará de uma comemoração sobre o restabelecimento de um fruto. A segunda Festa do Licuri, que acontecerá em Salvador, vai celebrar o reaparecimento da amêndoa extraída do fruto de uma palmeira nativa do Nordeste que é fonte de renda de diversas comunidades da Caatinga. Com essas amêndoa, a população produz granolas, petiscos, licores e sorvetes. Quando a nutricionista não está envolvida em eventos dessa natureza, ela se põe a descobrir sabores advindos de combinações desconhecidas, como as da comida asiática - a sua preferida - , que leva especiarias e frutas verdes como jaca, manga e mamão.'Não temos a ousadia de fazer as mesmas misturas', lamenta. Mas ela também dedica seu tempo a coisas mais simples, como fazer pães de tudo quanto é tipo. O costume veio da época em que morava no alojamento da universidade. 'Criei um punhado de receitas, e fiquei conhecida entre os amigos como a fazedora de pães', diz. Um dos mais cotados é o que leva banana-figo, fruta trazida do sítio do pai, que fica no interior de São Paulo. É lá que ela também abastece sua despensa com outros produtos da roça. Para os leitores da Globo Rural, Neide fez um pão de taro e um macarrão com dente-de-leão como sugestões para qualquer dia da semana. Quando lhe perguntam de onde ela inventa tanta coisa, como esse cardápio, a nutricionista costuma responder pegando emprestada a frase de Riobaldo, personagem do clássico Grande Sertão: Veredas: 'eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa'. |